Um pacto com o diabo
- olivialober
- 20 de jun. de 2021
- 7 min de leitura
Elias e seus pais recebem o bispo para jantar de quinze em quinze dias. Dessa vez, o bispo trouxe seu sobrinho.
Detalhes:
Novembro de 2019
1,7K palavras
Gênero: drama

Um pacto com o diabo
Deus visitava sua casa com frequência.
A porcelana bateu contra a mesa de madeira. Sua mãe bufou. “Vai lascar.” Ela pegou os pratos da mão de Elias. “Deixa que eu faço. Vai chamar sua irmã.”
“Quer que eu pegue a comida?”
“Não, vai chamar sua irmã. Procura no quintal.”
Elias se apressou pelo corredor. Na primeira porta à esquerda, as cortinas cor de rosa balançavam com o vento quente. O quarto estava vazio. Elias limpou o suor da testa. A camisa social o sufocava. Virou as costas para ir embora, sobrancelhas franzidas. Quintal? Ela nunca se escondia no quintal.
O piso de madeira rangeu. Elias parou no batente e sorriu.
Deitou-se no chão e se arrastou pelos braços para debaixo da cama, batendo a cabeça. A poeira fez cócegas em seu nariz. Embrulhos de bala se espalhavam pelo piso. Erza brincava com um deles.
“Mamãe tá chamando.” Elias ergueu as mangas e apoiou os braços na madeira fria. “Pro jantar.”
Erza balançou a cabeça.
Ele estendeu a mão e apertou sua bochecha. “Você tem que ir.” Ajeitou o lacinho magenta com bolinhas brancas em seu cabelo. “É sua comida favorita.”
Ela olhou para Elias. “Não é mais. Eu mudei.”
Elias revirou os olhos. “Hoje não vai ser tão ruim. Eu soube que o sobrinho dele vem também.”
“Senta do meu lado.”
“Óbvio.” Elias rastejou para fora da cama e estendeu a mão. Erza saiu e deixou Elias pegá-la no colo. “Eu preciso de alguém pra segurar minha mão na hora de rezar.” Erza sorriu.
Na sala, seu pai ajeitava a gravata. A lasanha fumegava na mesa, exalando o cheiro de molho de tomate. Elias beijou a bochecha da irmã e a colocou no chão.
Raquel ajeitou o vestido de Erza. Agachou e suspendeu os cantos de seus lábios com os polegares. “Sorriso.” Erza forçou um sorriso. A campainha tocou.
Deus visitava sua casa com frequência.
A cada quinze dias, ele vinha, jantava, e passava a noite. Algum dia, ele viria, jantaria e levaria Elias com ele. O Seminário o esperava. Elias secou o suor das palmas na calça. O pai abriu a porta. O bispo usava seu manto preto e o solidéu violeta.
“Bispo Uzi.” Nabal gesticulou para que ele entrasse. “Bem-vindo de volta.” O bispo estendeu sua mão. Nabal a beijou.
“Obrigado, Nabal,” Uzi disse. “Vir aqui é sempre a alegria da minha semana.” Deslizou sua maleta pelo ombro. “Eu trouxe um presente.”
“Presente?”
O bispo tirou um porta-retratos da pasta e o entregou a Nabal. Nabal encarou a foto e franziu as sobrancelhas. Raquel cumprimentou o bispo, pegou sua bolsa e a pendurou perto da entrada.
“Raquel,” o bispo disse. “Sua casa sempre tão impecável.”
“Brigada.” Raquel sorriu. “E o seu sobrinho?”
O bispo balançou a cabeça. “Atrasado.”
“Tudo bem, a gente—”
“Vem ver, Elias.” Uzi apontou para o porta-retratos. “Conhecer o seu futuro.”
Elias pegou a moldura da mão do pai.
O Diabo visitava sua casa com frequência.
Elias nunca conseguia vê-lo. Apenas senti-lo. Jovens de mandíbulas firmes e ombros largos, vestindo becas de formatura, posavam na foto preta e branca. Cílios grossos e lábios carnudos. O chapéu de formatura cobria seus cabelos, as mechas castanhas enquadrando os rostos fechados. Elias deslizou o dedo pelo corpo de um dos formandos, do pescoço aos pés. Podia ficar horas olhando para aqueles garotos.
“Você vai gostar muito do Seminário,” disse Uzi. “Consegue sentir o Chamado?”
Elias conseguia. Passar anos numa casa cercado por meninos. Dividindo quartos e vestiários. A textura áspera de barbas ralas, o descer e subir de maçãs de Adão, o cheiro de espuma de barbear. Elias sentia o perfume se fechasse os olhos. Deus o vigiava. Ele pigarreou. “Claro.” Deixou o porta-retratos em cima da cômoda e se afastou.
“Seu sobrinho também vai pro Seminário?” Raquel puxou a cadeira da cabeceira e gesticulou para o bispo.
Seu rosto murchou. “Meu sobrinho...” Uzi alisou a frente da batina e suspirou. “Não tem o Chamado.” Uzi segurou o queixo de Elias e o mirou nos olhos. Elias prendeu a respiração. “Ele não é que nem o filho de vocês.”
Se Deus podia ler os pensamentos, será que um bispo também podia?
Uzi largou seu queixo e sorriu, sentando-se. Ele apontou para a cadeira ao seu lado direito. Elias exalou e deixou seu corpo desabar. Segurou no assento com força até seus batimentos desacelerarem. Sua unha marcou o acolchoado da cadeira. O bispo ajeitou seu manto. “Vocês têm que ter muito orgulho dele.”
“A gente tem.” Nabal puxou a cadeira à esquerda de Uzi.
Raquel sentou ao lado do marido. “Erza,” ela chamou. “Vem cumprimentar o bispo.”
Erza balançou a cabeça de trás do batente da porta e correu para a cadeira ao lado de Elias.
“Erza.”
O bispo soltou uma risada. “Tudo bem, eu sei como são as crianças.” Uzi esticou as duas mãos. “Oremos.”
Uma batida na porta. Uzi bufou. Elias se levantou e se apressou até a entrada.
O Diabo visitava sua casa com frequência.
Elias nunca tinha o visto antes. Abriu a porta e o fôlego escapou seu peito. Seus cachos caíam sobre a testa. Ele vestia calça jeans e uma camisa folgada. Esmalte preto cobria as unhas. Sua mandíbula era delineada, e um alargador enfeitava uma das orelhas.
A voz do bispo ecoou pela sala. “André.”
Um brilho traiçoeiro se escondia atrás de seus olhos escuros. André desembrulhou um sorriso. “Você deve ser o Elias. Meu tio fala muito de você.” Ele estendeu a mão. André tinha dedos longos e um aperto firme.
Elias pigarreou. Uma gota de suor escorreu pela sua nuca. “Prazer.”
André cumprimentou todos à mesa e sentou-se na cabeceira restante. Uzi esticou as mãos. “Você chegou na hora certa.”
Deus e Diabo sentados frente à frente. Todos entrelaçaram os dedos e fecharam os olhos. O bispo rezou. Elias segurou firme na mão da irmã e respirou fundo. O toque aveludado de André latejava em sua pele. Livrai-nos do mal.
Amém.
Todos comeram.
“Por que você desistiu do Seminário?” André perguntou, olhando para o pai de Elias. Nabal tossiu e levou o guardanapo até a boca. Uzi lançou um olhar para o sobrinho.
“Eu era um jovem imaturo, na época,” ele disse. “Tomei decisões precipitadas.”
Uzi abriu um sorriso frio. “E se apaixonou.” As bochechas de Raquel coraram. “Por uma linda mulher.”
Elias ergueu as sobrancelhas e olhou para a mãe. Nabal encarou o pedaço de lasanha no garfo.
“O Nabal era um dos meus melhores alunos.” O bispo se virou para Elias. “Mas não se preocupe. Eu perdi o seu pai, mas graças a isso ganhei duas ótimas crianças.”
Elias estava destinado a fazer o que o seu pai não pôde. Ele forçou um sorriso. “É uma pena que a Erza não pode ser padre.”
O bispo levou a taça de vinho à boca. “Sim. Uma pena.” O jantar continuou.
Quando Uzi deu o primeiro bocejo, Nabal pediu para que Elias o levasse para o quarto de hóspedes. Depois que o bispo se instalou em seu cômodo, Elias entrou na porta à direita. Erza estava deitada na cama, segurando as cobertas até o pescoço. “Viu?” ele sussurrou. “Não foi tão ruim.” Ele beijou a testa da irmã, e saiu do quarto.
Seu pai cruzava o corredor. “Você vai dividir o quarto com o André. Ele vai dormir na cama de baixo.” Ele e a mãe foram dormir.
Elias encarou a porta do quarto de longe. Correu até a sala. As luzes estavam apagadas. O brilho da lua entrava pela janela. Ele se ajoelhou em frente à cruz de madeira na parede. Uniu as mãos e rezou.
Quando o relógio bateu meia-noite, Elias havia perdido a conta de quantas vezes havia dito ‘Perdoai-nos as nossas ofensas’.
Ele se levantou. Seus joelhos doíam. As fendas da madeira marcaram suas canelas. Elias hesitou em frente à maçaneta do quarto.
O Diabo visitava sua casa com frequência.
Os lençóis da cama de baixo estavam intactos. Sentado na cama de Elias, um de seus pés pendendo para fora, André deu duas batidinhas na superfície ao seu lado. Elias fechou a porta, rodou o trinco e se sentou. Sua expiração saiu trêmula. “O bispo—”
“Meu tio já tá dormindo.”
A luz amarelada da rua entrava pela fresta da cortina e deixava metade do quarto nas sombras. O ventilador de teto guinchava. Elias se virou para André. Os olhos do Diabo eram provocantes. Os lábios de Elias estavam secos.
Por que o Diabo sempre vencia? O rosto de André se aproximou. Suas bocas se tocaram. Elias soltou a respiração, e seus ombros cederam. Seu hálito tinha gosto do vinho do jantar. Elias nunca pensou que as mãos do Diabo seriam tenras. Que sua respiração seria morna, e seus braços, aconchegantes. André deitou Elias na cama. Elias fechou os olhos.
***
Acordou sem fôlego. O quarto estava escuro. O ventilador de teto guinchava. Suor escorria de sua testa. André estava deitado de bruços ao seu lado, o lençol cobrindo seu corpo até a cintura — o bronze de sua pele realçava os músculos das costas. Elias esticou o braço e deslizou o dedo pelas vértebras da sua coluna. Recolheu a mão e balançou a cabeça. Colocou uma roupa limpa, e saiu do quarto. Cruzou o corredor com passos fortes. Sua mão tocou na maçaneta fria, e arremessou a porta do quarto de hóspedes, que se chocou contra a parede.
Perdoe-me, Pai, pois eu pequei.
Sua respiração ofegava. A cama estava feita. O ponteiro do relógio de parede contava os segundos. Elias pôs a mão na testa, virou-se e disparou para a sala. A cruz de madeira teria que servir. Parou.
Deu dois passos para trás. A porta do quarto à direita estava entreaberta. Elias espiou pela fresta. Sua irmã estava acordada. Lágrimas escorriam de seus olhos cerrados. O bispo sentava ao seu lado, com a batina aberta. Sua mão se movia debaixo da camisola cor de rosa.
Elias se encostou à parede. O jantar escalou seu estômago. O líquido ardente queimou a garganta, o gosto azedo invadindo a boca. Seu coração martelava contra o peito. As paredes giraram.
O Diabo visitava sua casa com frequência. Ele vinha vestido de Deus.
esse final foi um soco no meu estômago